Por um punhado de dólares


Para economizar US$ 100, o Laboratório Enila falsificou medicamento e pode ter matado pelo menos 21 pessoas no país

Wagner Cabral/O Popular

Ricardo Diomedes saiu de casa, na Baixada Fluminense, no dia 21 de maio queixando-se de dores no estômago. Aos 57 anos, o técnico de consultório dentário estava animado com a chegada do terceiro neto. O menino nasceu na segunda-feira 9. Não conheceu o avô. Diomedes morreu dois dias depois de entrar no hospital para fazer um simples raio X. Ele é uma das supostas vítimas daquele que pode se tornar o maior crime da história da indústria farmacêutica no Brasil. Em vez de importar a matéria-prima do Celobar, um líquido de contraste usado em radiografias, o laboratório carioca Enila resolveu fabricá-lo no próprio quintal, sem ter competência técnica para isso. A empresa economizou US$ 100 na operação. E pode ter matado pelo menos 21 pessoas. Elas saíram de casa no fim de maio para fazer uma radiografia e morreram em agonia menos de 48 horas depois.

A tragédia começou a ser esboçada mais de um ano antes, em fevereiro de 2002. Naquele mês, o Enila recebeu 6 toneladas de sulfato de bário do laboratório alemão Sachtleben Cheme, um dos quatro no mundo com autorização para sua fabricação. Não pagou a encomenda e a companhia alemã cortou o fornecimento. O laboratório carioca resolveu produzir a substância em suas instalações. O procedimento parecia simples: tanto o sulfato quanto o carbonato são resultado de reações químicas do bário. Para conseguir o sulfato, é preciso adicionar ácido sulfúrico à matéria-prima. Mas, se a operação não for realizada dentro das condições adequadas, produz-se o carbonato, que é venenoso. O sulfato, inofensivo, não é absorvido pelo organismo. Em contato com a radiação, torna-se fluorescente e permite enxergar, por exemplo, o estômago do paciente no raio X.

O carbonato, ao contrário, entra na corrente sanguínea e provoca intoxicação aguda. Primeiro o rosto começa a formigar e a vítima é tomada por um enjôo profundo. Duas horas depois, já vomita sem parar e tem uma diarréia intensa. A dor abdominal é fortíssima, a pupila se dilata e a pessoa mal consegue enxergar. O processo químico devastador provoca um desequilíbrio celular e os músculos começam a enfraquecer. O carbonato é tão letal que bastam 35 miligramas para matar um adulto de 70 quilos. É usado como veneno de rato. "Meu pai tentava falar, mas não conseguia. Quando eu tentei levantá-lo, sua cabeça caiu no meu ombro. Eu vi que ele ia morrer", conta Wellington Almeida de Lima. O pai dele, o comerciante goiano Otávio Gonçalves de Lima, de 63 anos, tomou dois frascos de Celobar em ä 21 de maio para fazer um raio X do esôfago. Às 13h30 do dia seguinte, morreu.

No início do ano, o Enila comprou 600 quilos de carbonato da indústria Farmos, conforme a nota fiscal de número 000624, obtida por ÉPOCA. Pagou R$ 1.800 pela carga. Se tivesse comprado a mesma quantidade de sulfato, desembolsaria R$ 2.100. Ou seja: uma economia de R$ 300 (US$ 100) ou 50 centavos por quilo. "A direção do Enila fez a transformação química por economia", acusa Antônio Carlos Bezerra, gerente de inspeção da Agência Nacional de Vigilância.

A experiência não deu certo. O lote foi condenado pelo químico Antônio Carlos Fonseca, responsável pelo controle de qualidade do laboratório. Mesmo assim, 4.500 unidades do Celobar foram para a rua graças a mais um fato fraudulento: na liberação, consta a assinatura do químico Sérgio Portocarreiro, demitido da empresa um ano antes. "Eu não assinei. Se o lote é ruim, eu não assino. Não sei como minha assinatura apareceu ali", defende-se o ex-funcionário. Então, ou Portocarreiro assinava dezenas de liberações em branco ou sua assinatura foi falsificada. "Tudo indica que houve uma atitude criminosa na substituição de uma matéria-prima por outra, inadequada, apenas por razões econômicas", afirmou o ministro da Saúde, Humberto Costa. "Se confirmada, temos de dar uma punição exemplar para que nenhum outro laboratório do Brasil ouse fazer algo semelhante."

O primeiro a denunciar o medicamento foi Jorge Torres Ferreira. Em 26 de maio, cinco dias após a morte da mulher, a professora Rejane Lapolli, ele procurou o Instituto Médico-Legal de Goiânia para exigir apuração do caso. Relatou as 24 horas de sofrimento vividas pela esposa depois de ingerir Celobar para um exame de rotina. "Assassinaram a minha mulher", desabafou. O superintendente do IML, Décio Marinho, tinha acabado de ler em um anúncio de pé de página do jornal O Globo um comunicado do Enila informando o recolhimento de um lote de Celobar "por estar impróprio ao uso, podendo causar diarréia, dor abdominal e vômito". Naquele momento 135 pessoas estavam contaminadas. Destas, cinco já haviam morrido. A denúncia de Jorge deu início a um inquérito que já reúne 200 páginas de horror no 4o Distrito Policial da capital de Goiás. Dos 21 mortos, 14 são de Goiânia - ä destino de 1.600 dos 4.500 frascos contaminados de Celobar.

Época

 

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