O guru da felicidade


Com aliados famosos e best-sellers, o Dalai Lama faz crescer a simpatia pelo budismo no Ocidente

Sua presença é menos etérea do que se esperaria de alguém apontado como uma encarnação de Buda. Os gestos são entusiasmados, o aperto de mão é enérgico e a risada sem censura faz até o que não tem graça soar divertido. Aos olhos de um ocidental, a rotina do 14º Dalai Lama, líder espiritual dos tibetanos, também está mais para a de um ser deste mundo que para a de um deus vivo que já atingiu o nirvana e voltou para servir aos humanos, como os budistas o consideram. Ele passa quase seis meses do ano em viagens, encontrando-se com parlamentares e chefes de Estado, arrebanhando multidões em audiências públicas nas quais prega a paz, ensinando preceitos do budismo a platéias lotadas e escrevendo livros sobre compaixão e ética, que são best-sellers. Já publicou mais de 50. No Brasil, vendeu quase 900 mil exemplares de cerca de 30 títulos nos últimos quatro anos.

A felicidade é um de seus temas favoritos. Não é de estranhar, portanto, que pessoas de qualquer credo - ou de nenhum - se interessem cada vez mais pela figura e pelos ensinamentos do Dalai Lama. Ele mesmo faz questão de desvincular seu discurso do de um líder meramente religioso. 'Não quero converter ninguém. Meu maior interesse é promover os valores humanos', avisa. Essa mistura de pacifismo com auto-ajuda brotou quando o Dalai Lama ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 1989, por sua luta em favor da libertação do território tibetano, sob domínio da China desde 1950. A partir daí, suas audiências públicas, que antes reuniam não mais que 300 pessoas, passaram a atrair multidões de até 50 mil pessoas. Em sua segunda e mais recente visita ao Brasil, em 1999, reuniu 8 mil ouvintes e dividiu o palco com Gilberto Gil e Rita Lee. Famosos como os atores Richard Gere e Sharon Stone apóiam ativamente a causa do Tibete. O Dalai Lama acabou tornando-se ele próprio uma celebridade. Virou embaixador da paz, da causa tibetana e do budismo - embora ele represente apenas uma das muitas vertentes da religião no mundo.

As pregações do simpático monge de 67 anos não trazem enfoques inéditos ou reflexões extraordinárias. Há anos repete as mesmas receitas singelas de 'desenvolver a compaixão pelos outros', 'limpar a mente de emoções negativas' e 'reconhecer que todos têm o mesmo potencial'. Ainda assim, consegue tocar multidões. Na semana retrasada, 14 mil suecos, de jovens com piercing no nariz a senhoras aposentadas, lotaram um ginásio de shows em Estocolmo, onde estavam em cartaz Ozzy Osborne e Mariah Carey, para ouvi-lo entoar o mesmo mantra de paz e felicidade de sempre. Saiu aplaudido de pé. No dia seguinte, 2 mil pessoas pagaram R$ 150 por uma palestra idêntica em Copenhague, na Dinamarca. Uma mulher na platéia perguntou o que fazer com um filho que não lhe obedece. Depois de gracejar simulando no ar um tabefe na criança impertinente, o Dalai levou a audiência ao delírio ao recomendar: 'Paciência, paciência e paciência'.

Seja ao vivo, seja nos vídeos ou nos livros, o Dalai Lama conquista menos pelo conteúdo que pela forma com que se dirige às pessoas, sempre espontânea e desprovida de solenidade. Não faz cerimônia para responder com um franco 'não sei' à pergunta sem sentido de um ouvinte. Tampouco se constrange ao desconcentrar os alunos de um curso de conceitos budistas profundos quando tira de sua sacola de monge uma viseira amarela e a coloca na cabeça raspada, para proteger o rosto da luz dos refletores. O charme do líder se completa com o hábito cor de vinho e açafrão e os chinelos de dedo.

Essa dinastia de líderes ao mesmo tempo seculares e religiosos, os Dalai Lamas, foi instituída no século XIV pelos mongóis para facilitar a administração do Tibete, um platô inóspito a 4 mil metros de altitude, espremido entre a Índia e a China. O título de 'oceano de sabedoria' foi concedido pela primeira vez ao abade de um mosteiro. Desde então, a honraria vem sendo transmitida a crianças consideradas encarnações do Dalai Lama anterior. A atual, Tenzin Gyatso, é a 14ª manifestação.

Filho de camponeses, o pequeno Buda foi reconhecido quando tinha apenas 2 anos de idade. Os sinais que o identificaram foram apontados por oráculos e curiosas formações de nuvens na região em que morava. O garoto também teve de distinguir, entre diversas réplicas, os rosários, os tambores e as bengalas que haviam pertencido a seu antecessor, o 13o Dalai Lama. Aos 6 anos, então, foi separado da família e instalado no Palácio Potala, na capital, Lhasa, para receber a educação de líder. Formou-se doutor em filosofia budista em três mosteiros.

Em 1950, quando ele tinha apenas 16 anos, a China invadiu o Tibete e o Dalai Lama teve de assumir antecipadamente o poder, até então nas mãos de um regente. Durante nove anos ele tentou negociar a autonomia do Tibete com o governo comunista. Como o território é isolado e era quase desconhecido do mundo ocidental, sem representações diplomáticas ou relações comerciais com outros países, o líder não contou com a ajuda internacional. Depois de uma rebelião malsucedida, em 1959, ele refugiou-se na Índia com mais 100 mil tibetanos. Ali estabeleceu um governo no exílio.

No Tibete, milhares de mosteiros foram destruídos. Pessoas foram torturadas e mortas. A repressão chinesa intimida a prática religiosa e proíbe fotos do Dalai Lama até hoje. Uma política de transferência de população vem sendo implementada pelo governo comunista, e estima-se que os tibetanos correspondam a apenas um quinto da população atual do Tibete. Nesses 40 anos de exílio, o governo do Dalai, sediado em Dharamsala, no norte da Índia, promoveu a construção de mosteiros, escolas e instituições para preservar a cultura e a religião e também criou programas de assentamento de famílias e de apoio a refugiados. Graças a uma Constituição democrática, desde 2001 são realizadas eleições diretas para o Executivo. O governo se mantém com a ajuda de vários países e da contribuição voluntária dos tibetanos espalhados pelo mundo - situação que lembra a diáspora judaica. Na semana passada, uma comissão tibetana retornou da China após uma segunda rodada das negociações iniciadas em setembro. 'Não queremos independência, mas autonomia para as questões internas', diz o Dalai Lama. Apesar das conversações, o conflito está muito longe de uma solução.

Enquanto isso, o líder no exílio não perde a chance de mencionar a questão tibetana em suas palestras, entre uma fala sobre diálogo inter-religioso e outra sobre 'valores humanos'. Assim vai tornando o problema mais conhecido e somando apoios. Para a China, não poderia haver arma mais nefasta que o carisma e a projeção mundial do Dalai Lama. Ele, por sua vez, exercita a tolerância infinita que prega: garante não guardar rancor dos chineses. Afinal, não fosse a invasão comunista, é muito provável que sua notoriedade, a de sua cultura e de sua linhagem religiosa permanecessem restritas aos 6 milhões de habitantes do platô tibetano.

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